A situação dos trabalhadores domésticos no Brasil
Para analisar a notícia, é essencial contar com alguns dados sobre o trabalho doméstico no Brasil, onde se incluem os serviços prestados por babás, cozinheiros, faxineiros, diaristas, acompanhantes de idosos, entre outros.
O Brasil é o país com maior número de empregados domésticos no mundo (formais e informais), no entanto, somente em 2012 essa categoria foi regularizada de acordo com a CLT. De acordo com pesquisa do IBGE, 94% dos trabalhadores nessa categoria são mulheres. Em São Paulo, 50% se declaram pretos ou pardos, no Rio de Janeiro, local onde a babá da notícia foi entrevistada, a porcentagem chega a 68,8%.
A discriminação e desvalorização que a categoria sofre já foram evidenciadas na teledramaturgia, nos livros e no cinema. Podemos tomar como um exemplo o recente filme Que Horas Ela Volta, estrelado por Regina Casé, que narra a vivência de uma empregada doméstica nordestina na casa de uma família de classe média alta do Morumbi, em São Paulo, para quem trabalha há muitos anos. O filme foca principalmente no esforço dos patrões para mostrarem benevolência e aceitação para com a personagem, quando na verdade a relação é marcada por preconceitos velados e desigualdade escancarada.
Ainda que o trabalho doméstico tenha sido regulamentado, ele até hoje é visto como a “alternativa para aqueles que não têm alternativas”, e muitas vezes as regras da CLT são ignoradas pelos patrões. No interior do Brasill, é frequente que meninas (muitas vezes menores de 14 anos) deixem suas casas para prestar serviços de diaristas e babás na “cidade grande” ganhando em troca a moradia e um baixo ou nenhum salário, conforme o que é mostrado no filme.
Assim como nos tempos da Casa Grande, o trabalho doméstico é diminuído, algo que muitas pessoas se sentiriam ofendidas por ter que fazer (tal qual Gilberto Freyre diz ser uma das características dos portugueses colonizadores), e por isso delegam a um subalterno. A herança colonial com que encaramos o serviço doméstico é muito visível na sociedade atual. Um estigma escravocrata acompanha as diversas formas de trabalhos serviçais, geralmente delegados às camadas mais baixas da população.
A vida de uma babá no clube mais seleto do Rio de Janeiro
Conforme a fala da babá entrevistada, o Country Clube está repleto de regras que buscam “manter cada um no seu lugar”. Embora as relações entre o patrão e o empregado sejam aparentemente amistosas e harmoniosas, ainda há uma necessidade de mostrar que a babá é uma serviçal, não faz parte daquela esfera social, o que denota um eco da relação senhor x escravo e uma referência ao mito da escravidão benevolente e o preconceito velado descritos por Abdias do Nascimento.
Assim como Gilberto Freyre descreve em “Casa Grande & Senzala”, há uma aproximação pessoal entre os patrões e seus empregados, de forma que a babá se torna a “segunda mãe” da criança de quem cuida, ficam próximos e afeiçoados. Mas mesmo assim, a babá nunca ultrapassa a linha que a marca como uma serviçal. Gabriela leva as crianças ao clube mesmo quando os pais (seus patrões) estão em casa, e diz não saber como explicar às crianças que não pode se sentar junto com elas, embora siga essa rotina há dois anos e passe muito tempo lá.
Ao prosseguir, a notícia faz referência a uma situação em que uma babá foi proibida de usar os banheiros do clube, o que mostra a segregação social que acontece por lá, se traduzindo no tratamento destinado às serviçais e na necessidade que o clube impõe de não permitir que elas se “misturem” com os sócios, vide o caso de não poderem utilizar o banheiro e ao mesmo tempo não haver um exclusivo para elas.
Gabriela diz que a regra sobre os banheiros não é explícita, mas sim tácita, assim como a regra que diz que ela não pode sentar nos pufes com as crianças. A segregação social dentro do clube foi interiorizada pelas babás e naturalizada: “Eu nunca fui impedida, mas sabemos que não podemos e acabamos respeitando.”
Em 2014, o governador do Rio de Janeiro sancionou uma lei que proibia que clubes privados exigissem que babás fossem identificadas com roupa branca, depois que uma delas foi expulsa de um deles. A justificativa se deu pela absurda necessidade de a babá ser identificada como não membro do clube quando convidados e amigos dos sócios, não precisavam ser identificados como tal. A roupa branca seria uma forma de discriminar o indivíduo, deixando clara a esfera social a que ele pertence. No entanto, a notícia publicada no EL PAÍS faz referência a essa lei, dizendo que as babás do Country Clube ainda precisam usar roupas específicas para frequentarem o local.
Dando continuidade à notícia, Gabriela narra como é sua vida pessoal, e quem cuida dos seus próprios filhos enquanto ela trabalha em tempo integral. Essa relação foi abordada de forma romantizada em Casa Grande & Senzala: A escrava cuida dos filhos dos senhores e apega-se emocionalmente à eles, enquanto seus próprios filhos são desprezados e esquecidos.
“A mãe, a tia e a avó de Gabriela, todas babás em famílias ricas, a alertaram depois do episódio do banheiro: "Já foi bem pior. Hoje está ótimo”. Neste trecho da notícia, nota-se o estigma familiar do trabalho doméstico, mais uma herança das relações na Casa Grande.
O serviço doméstico é a única categoria em que o empregado precisa estar disponível quando e como o patrão desejar: vide a necessidade de praticamente morar no emprego e só ver sua família a cada 15 dias. Há aqui outro reflexo da herança colonial e do estigma que o trabalho doméstico carrega. Embora a CLT busque mudar essa situação, ela ainda é muito comum e natural, pois no Brasil, ser empregada/babá não é um serviço como os outros, ele está inserido numa dimensão própria de regras e tratamento.
Quando a entrevistada fala de seu salário e jornada de trabalho, ainda é possível relacionar o “jeitinho brasileiro” que Sérgio Buarque de Holanda caracterizou em Raízes do Brasil. Ela é registrada ganhando uma quantia, mas na verdade recebe mais que o dobro, uma forma de seus patrões passarem por cima dos encargos tributários e pagamento de benefícios.