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A inserção do Islã na sociedade brasileira

Trabalho apresentado à disciplina de Identidade e Cultura, da Universidade Federal do ABC, com o objetivo de desenvolver uma pesquisa que proporcione uma experiência prática na definição de cultura e identidade, associando aos conceitos teóricos estudados em sala. Orientador: Lúcio Nagib Bittencourt. ​Integrantes do grupo: Amanda Cavalcante, Carolina Martins, Caio Garbin Juhàsz, Henrique Pacheco Afonso, Izabela Novo, Liene Venâncio da Costa, Otávio Lourenço e Rafaela Martins.

RESUMO

 

Este estudo trata da inserção da cultura islâmica no Brasil, considerando a pluralidade cultural da sociedade brasileira, para relacionar às teorias aprendidas em sala de aula sobre identidade e cultura. Para isso foi realizada uma pesquisa de campo para compreender os muçulmanos e à partir disso, a visão deles da sociedade brasileira. O resultado foi identificação do preconceito da sociedade em relação aos muçulmanos, quebra de estereótipos, uma compreensão básica do Islam e dos meios para adaptação de refugiados disponíveis atualmente na comunidade islâmica.

 

Palavras chave: Islam. Muçulmano. Cultura. Preconceito. Religião.

INTRODUÇÃO E OBJETIVOS

A religião islâmica é a que mais cresce em número de adeptos no mundo atual. Ao todo, os fiéis muçulmanos já chegam a 1,2 bilhão de pessoas, atrás somente do cristianismo. Escolhemos o Islã como tema central do trabalho a fim de esclarecer mitos sobre a comunidade que são comuns no imaginário popular ocidental, fomentados principalmente pelas ideias extremistas que nortearam diversos ataques nos últimos tempos e tem aterrorizado a população mundial.

Através da observação, vivência e entrevistas que fizemos com membros de entidades relacionadas à religião, estabelecemos três focos de pesquisa: 1) compreender como se dá a assimilação da cultura árabe numa sociedade heterogênea como a brasileira, principalmente num momento de crise humanitária em que milhares de pessoas, a maioria do Oriente Médio e África, são forçadas a deixar seus países e encarar culturas completamente estranhas; 2) Entender os fundamentos do Islamismo, o diálogo interreligioso e o valor de manter suas tradições e preservar a moral que guia os fiéis; 3) Compreender, com o auxílio dos sheikhs, que são líderes com grande conhecimento sobre a religião e suas normas, os valores culturais dentro do Islã e como se relacionam com a comunidade externa, a fim de, principalmente, estudar o choque cultural que se dá entre essas duas visões de mundo.

      

Por fim, pretendemos relacionar os autores estudados ao longo da disciplina com o trabalho de campo realizado, e analisar sob a perspectiva das Relações Internacionais, Políticas Públicas e Economia os efeitos dessa assimilação cultural, religiosa e política.

 

 

INÍCIO DA PESQUISA

Ao decidir sobre o tema, iniciamos a pesquisa entrando em contato com a WAMY (sigla em inglês para Assembleia Mundial da Juventude Islâmica), localizada próximo ao centro de São Bernardo do Campo. A WAMY é uma entidade sem fins lucrativos cujo objetivo é preservar as tradições islâmicas e a cultura árabe, além de atrair jovens para a religião e impedir seu desvio moral. Lá, quem nos recebeu foi o Sheikh Yuri Ansare, tradutor de árabe, estudioso da religião islâmica, professor da WAMY e membro ativo da comunidade.

Conversamos longamente com o sheikh sobre diversos assuntos, variando desde os conceitos mais simples da religião, como o significado da palavra islam, passando pelas leis que orientam países como a Arábia Saudita, até chegarmos à visão dos religiosos sobre temas polêmicos como poligamia, homossexualidade, machismo e violência. O sheikh nos deu orientações sobre outros lugares em que poderíamos pesquisar o tema. Sua ajuda foi fundamental para estabelecer os rumos dos subgrupos e seus focos.

Estabelecemos então que um trio frequentaria as orações na mesquita Abu Bakr Assidik e uma aula do sheikh Yuri sobre o Alcorão, uma dupla continuaria a pesquisa conceitual entrando em contato com o CDIAL (Centro de Divulgação do Islã para a América Latina), localizado também em São Bernardo do Campo, e o último trio ficou responsável por visitar Medina, uma escola baseada em diretrizes islâmicas que faz um trabalho de integração dos muçulmanos estrangeiros (alguns refugiados sírios) na comunidade brasileira, atuando principalmente através do ensino de português para crianças refugiadas, para posteriormente voltarem a estudar.

Visita à mesquita e aula de São Bernardo do Campo

Quando visitamos a mesquita pela primeira vez, o sheikh Yuri nos acompanhou e orientou sobre como deveríamos nos portar lá dentro. Há uma série de regras sobre vestimenta (incluindo o véu islâmico para todas as meninas), lugares onde se posicionar durante a oração (mulheres e homens entram por lugares diferentes, pois lá dentro também ficam separados) e como se comunicar com os outros (pessoas de sexo oposto não podem se tocar, a menos que sejam casados).

Embora os muçulmanos rezem todos os dias, a sexta-feira é especial (tal qual o domingo para os católicos e o sábado para os judeus), por isso é o único dia em que o Imame (semelhante a um padre) conduz a oração na mesquita e dá sermões aos fiéis. No dia em que comparecemos à oração (29/07), o sermão era sobre conscientização financeira, moderação na vida privada e extremismos. A oração é toda em árabe, mas os fiéis que não entendem o idioma podem usar fones com tradução instantânea (feita pelo sheikh Yuri).

        

A segunda visita foi a aula que assistimos na WAMY (em 31/07). Todas as aulas são ministradas pelo sheik Yuri. O tema central são livros que interpretam passagens do Alcorão, algo semelhante a uma catequese, em que os alunos também aprendem termos importantes em árabe. A primeira coisa que nos chamou a atenção foi a presença massiva de mulheres na aula, ao passo que, dos frequentadores da mesquita, a enorme maioria são homens.

Embora o tema central das aulas seja a interpretação das passagens do livro sagrado, uma grande variedade de assuntos surge espontaneamente entre os alunos, e, devido a presença de muitas mulheres neste dia, um dos assuntos levantados foram os papéis de gênero dentro da religião. Uma das alunas levantou a questão dos salários desiguais entre homens e mulheres e da aposentadoria “tardia” dos homens, o que suscitou outros temas como, por exemplo, o papel do homem como provedor do lar e fonte de sustento, e a mulher como cuidadora passiva. Havia algumas discordâncias entre o grupo: alguns possuíam uma visão bastante conservadora nesse aspecto, incluindo o sheikh Yuri, e algumas se mostravam mais dispostas a romper essa ideia.

Ao final da aula conversamos com duas alunas: uma chamada Bruna, que disse ser convertida e ter enfrentado alguns problemas de aceitação dentro da família, e outra estudante de Relações Internacionais do Centro Universitário de Santo André. Pudemos notar que todos ali possuíam boas condições financeiras e grau de instrução razoável. Ao final da aula, fomos convidados pelo sheikh para falar sobre nossas impressões da aula, das alunas e da religião no geral, e como levaríamos isso para nosso trabalho, então comentamos que foi bastante esclarecedora para nós, pois aprendemos bastante sobre como os muçulmanos enxergam as outras religiões abraâmicas e como levam os ensinamentos de seu profeta para cada aspecto de suas vidas.

 

Por fim, fizemos a última visita novamente à mesquita Abu Bakr Assidik, desta vez sem a orientação de um membro de dentro. Houve certa dificuldade para colocar o hijab (véu islâmico) sem ajuda, mas novamente fomos bem recebidos. O sermão deste dia (12/08) foi com um Imame diferente, e o tema central foi o extremismo religioso, a deturpação da crença e os ataques terroristas. Consideramos de extrema importância que um líder religioso alerte sua comunidade sobre o dever de conscientização e tolerância. Ainda podemos ressaltar que em ambas as visitas à mesquita, encontramos um vendedor de doces da UFABC, cujo apelido é “sírio”, mas o nome é Mohammed. Também nesta última visita tiramos as fotos (com devida autorização).

 

Visita ao CDIAL

O CDIAL (Centro de Divulgação do Islã para a América Latina) é uma entidade localizada em São Bernardo do Campo, exatamente ao lado da mesquita Abu Bakr Assidik, responsável por promover eventos, encontros, e atividades beneficentes dentro da comunidade, além de uma articulação entre os representantes islâmicos de outros países da América Latina. Lá, conversamos com o sheik Charle, que diferente do sheikh Yuri (que é árabe), é um brasileiro convertido. A entrevista focou principalmente nos modos como a religião e a cultura árabe são passados através da mídia, e como se dá a divulgação do CDIAL, feita através das redes sociais e em colaboração com universidades promovendo palestras e eventos abertos à comunidade não-islâmica.

Assim como ocorre com a WAMY, o CDIAL busca trazer novos membros para a religião, e manter os que já são convertidos no caminho correto. Há também um departamento feminino responsável por arrecadar e distribuir cestas básicas para refugiados, além de ser ponto de encontro de vários praticantes da religião, entre estrangeiros que precisam de acolhimento, aos muitos comerciantes árabes dessa região do município. Nota-se uma forte articulação dessa comunidade para integrar membros estrangeiros que chegam ao país sem nenhum tipo de assistência. A dupla foi presenteada com livros sobre a religião e sociedade muçulmanas, que utilizamos para fundamentar alguns itens citados no ensaio.

 

Visita à escola Medina

No dia 12/08/2016 visitamos a escola Medina, localizada próxima a estação rodoviária de São Bernardo do Campo, na rua Rui Barbosa, 325, Jardim Olavo Bilac, um bairro residencial, aparentemente de classe média.

Chegamos às 8:30 da manhã, eles estavam no período do intervalo, brincando no pátio bastante energéticos. Na recepção, já haviam evidências de que aquela escola era muçulmana, a mesa ao lado das cadeiras de espera continha diversos panfletos – alguns que havíamos recebido – e livros sobre o Islamismo além de fotografias nas paredes mostrando um momento de oração. Às 9:00, fomos recebidas pelo Sheik que explicou como funcionava a instituição.

Atendendo alunos do ensino fundamental, ela mantém um ensino laico, com influências islâmicas, durante o período habitual das aulas, ensinando por exemplo na área da ciência a visão evolucionista da história do ser humano. Durante a observação de uma aula do sétimo de história/geografia o professor falava sobre as características do planalto brasileiro, também haviam expostos nas paredes, trabalhos feitos pelos alunos sobre Malcon X, Panteras Negras e Martin Luther King, com isso constatamos que temas sobre preconceito e racismo eram abordados em sala de aula e posteriormente, lendo um livro que nos foi dado, descobrimos que Malcon X era islâmico.

Entretanto, em feriados tradicionais muçulmanos os alunos são dispensados das aulas e. em respeito a religião islâmica sunita que evita o contato físico entre homens e mulheres “desconhecidos”, alunos a partir do quinto ano fazem educação física separados meninos de meninas. O namoro também não é permitido na escola, pois de acordo com a religião ele é proibido. Este contato também é evitado em aulas de arte quando o trabalho implica na execução de danças de pares. Tal hábito pode ser encarado de forma generalizada como um traço cultural comum nos países do Oriente Médio – já que há uma maioria muçulmana - e também aos grupos que vivem em outros países porém mantém o costume – que é o caso com o qual entramos em contato - o que cria uma unidade em uma análise de dimensão sociológica.

Como uma matéria opcional do período integral, os ensinamentos islâmicos e a língua árabe são transmitidos aos alunos, são feitas também na escola as orações, direcionadas pelo sheik Yuri, nos horários estabelecidos pela doutrina. Diferente do que imaginávamos, existe um certo equilíbrio na quantidade de funcionários muçulmanos e não-muçulmanos. No primeiro momento houve um estranhamento deles por causa da nossa presença, em seguida uma certa curiosidade e depois que fomos apresentadas se mostraram bastante solícitos e simpáticos.

A grande maioria são de professoras, no dia em que fomos identificamos somente um professor homem. As professoras muçulmanas optam pelo uso do lenço e geralmente lecionam para alunos do primeiro ao quarto ano, assim como aulas de árabe.  Como a escola oferece o ensino somente fundamental, vários alunos quando chegam no ensino médio vão para a escola localizada na zona leste de São Paulo, no Carrão, que segue o mesmo estilo de ensino da Medina. Outros alunos, devido à distância vão para escolas particulares mais próximas.

Conseguimos observar e conversar com os alunos enquanto estavam no pátio. O primeiro intervalo era das crianças das crianças menores (do 1º ao 4º ano) e o segundo para os alunos maiores (do 5º ao 9º ano). A maioria são muçulmanos, brasileiros, brancos, filhos de estrangeiros ou brasileiros convertidos ao Islam, pudemos observar isso pelos seus nomes com significados religiosos, pois na porta de cada sala havia uma lista com os nomes dos alunos que a compunha.

Antes de nos apresentar os menores estavam bastante curiosos, as meninas mais que os meninos, pois eles estavam mais interessados no jogo de tênis de mesa. Depois que nos apresentamos as meninas ficaram empolgadas para conversar conosco, depois de algumas perguntas identificamos algumas meninas e meninos vieram do Líbano e da Síria, porém só soubemos disso porque o sheik nos falou pois falavam o português perfeitamente, apesar de estarem no Brasil a poucos meses. Perguntamos a eles se gostavam do Brasil e todos disseram que sim. Algumas meninas usavam o véu e outras não, nos chamou a atenção duas gêmeas, uma usava e outra não sendo as duas irmãs. Com isso concluímos que o uso do véu é uma opção bastante pessoal e respeitada, pois não é uma imposição religiosa, está relacionado à cultura e não ao Islam.

No segundo intervalo com os maiores, fomos identificadas como alunas novas da escola, talvez por causa da nossa estatura e mochilas que usávamos. O sheik nos mostrou duas alunas que nem seus pais, nem ela eram muçulmanos, entretanto o pai de uma delas  escolheu a Medina porque lá o namoro é proibido e a mãe da outra menina trabalhava na escola como professora. Exceto elas, todos os alunos eram muçulmanos.

Ainda no intervalo conversamos com um aluno bastante extrovertido, que brincou conosco falando que era ateu e agnóstico, mas não podíamos dizer nada pois seus pais nem desconfiavam disso. Todos pareciam bastante dinâmicos, comunicativos e divertidos. Chamamos algumas meninas para conversar e perguntamos à elas sobre o uso do véu e a visão que os pais delas tinham disso. Somente uma usava o véu e era elogiada pelas demais por sua coragem. Outras costumavam usar o véu, mas depois deixou de usar. Perguntamos àquelas que não usavam se eram pressionadas pelos pais a usar, somente uma disse que sentia essa pressão, mas conseguia lidar com isso. Todas as outras disseram que os pais não as pressionavam nesse sentido. Quando perguntamos o motivo de não usarem, falaram que era uma questão de escolha própria. Acreditamos que muitas preferem não usar porque não querem ser diferente dos demais nem chamar atenção, principalmente as adolescentes.

Enquanto conhecíamos uma sala do quinto ano, observamos algumas brincadeiras de um menino: ele se auto entitulava “homem bomba”, em seguida a professora Priscila (não muçulmana) nos contou a experiência que teve no primeiro dia de aula com a turma do sétimo ano: “Eu entrei na sala e pedi que os alunos se apresentassem, quando um aluno fez uma metralhadora de papel e começou a cantar ‘pega a metralhadora e trá trá trá trá…”. Após esse relato todos nós rimos, pois a professora nos passou isso com um tom de brincadeira. Assim que saímos da sala, comentamos sobre como as crianças reagem ao preconceito que são expostas por causa da religião, elas preferem levar para o lado da brincadeira. Como o sheik Yuri falou, se estivessem em uma escola diferente, esses episódios de preconceito seriam muito mais frequentes e com um tom ofensivo.

Então percebemos a função social que a escola Medina possui dentro do grupo islâmico, pois em um ambiente que a maioria é islâmica, os muçulmanos se sentem mais acolhidos e protegidos, um local onde o refugiado e o imigrante pode aprender a língua portuguesa, empregar-se, estar mais livre de julgamentos maliciosos, de hostilidade. Isso, consequentemente colabora para a preservação da religião e da cultura. Ou seja, realiza uma tarefa que deveria ser feita pelo governo.

Outro aspecto que nos chamou a atenção foi como a escola é financiada, que sendo particular possui um valor fixo mensal, pago pelos pais dos alunos. Entretanto há um sistema de concessão de bolsas, no qual é analisada a situação financeira da família, a partir disso é estipulado um valor mensal acessível. Como um exemplo o sheikh Yuri citou o caso de um pai que inicialmente poderia pagar o valor de R$50,00, tendo recém chegado ao Brasil, entretanto com o passar do tempo e com a ajuda que a comunidade proporcionou a ele, como um emprego, sua condição financeira melhorou e ele, voluntariamente decidiu aumentar o valor da mensalidade gradativamente, conforme a situação financeira lhe permitia.

Visita à Mesquita do Pari

A Mesquita do Pari fica no bairro do Brás, que possui forte influência árabe percebida no comércio e nos restaurantes, que possuem pratos típicos e vendem produtos especiais para muçulmanos, como as carnes bovinas e de frango Halal (um ritual de sacrifício de animais). Também ficamos um tempo na entrada da mesquita  e observamos que a maioria dos frequentadores eram estrangeiros, depois descobrimos que lá é um ponto de encontro de brasileiros e pessoas vindas de diversos lugares. Fomos bem recebidos na mesquita e enquanto esperávamos, a secretaria nos deu livros e panfletos explicando de forma bastante didática os principais pontos do islamismo, conseguindo dar uma boa dimensão da realidade dessa religião

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Conversamos com o sheikh Rodrigo Rodrigues, brasileiro, de família católica, se converteu aos 15 anos, cursou Estudos Islâmicos na Arábia Saudita e agora é professor da escola islâmica do Carrão (citada anteriormente). Ele é uma pessoa extremamente comunicativa e articulada, buscou sanar todas as nossas dúvidas da melhor maneira possível e nos apresentar os costumes e hábitos do Islam, inclusive ligou a TV para que pudéssemos assistir à oração da tarde, já que não podíamos participar. Ele nos apresentou também duas festas religiosas promovidas pelas mesquitas:

  1. Eid al-Fitr: Ou festa do desjejum, é celebrada no fim do Hamadã com um banquete preparado por toda a comunidade

  2. Eid al-Adha: Ou festa do sacrifício, é celebrada no término da perigrinação e relembra o sacrifício de Abraão, para isso é realizado um banquete também.  
     

Durante a conversa o tema preconceito foi abordado, por isso o sheikh citou alguns autores que estudamos, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda para falar sobre o homem cordial e Durkein, que definou o preconceito como uma doença da sociedade. Quando algum caso de violência preconceituosa chega ao conhecimento dos líderes religiosos, eles aconselham a vítima a denunciar no Ministério Público, como uma forma de combate.

 

Além disso, para falar sobre cultura ele usou conceitos das ciências sociais, história e política, e nos mostrou uma ideia bastante interessante e diferente sobre a definição de cultura. Para ele, o Islam gera uma identidade comum entre os seus seguidores porque al-Sheha esclarece que:

O Islam não é como alguns pensam – meros ritos religiosos que são praticados em tempos pré-estabelecidos – mas engloba fé, lei, devoções, transações e procedimentos. É uma religião e também um sistema governamental. […] Não é um assunto privado para os indivíduos, abrangendo apenas a periferia de suas vidas, mas algo que é tanto público como privado, algo que permeia o todo – dogma religioso, formas de adoração, teorias políticas e um detalhado código de conduta, [...] higiene ou etiqueta. (Al-Sheda, p. 9 e 10)

 

Pouco tempo depois de iniciarmos nossa conversa, chegou um grupo de alunos do primeiro ano do ensino médio para também conversar com o Rodrigo, ele foi bem atencioso para responder as perguntas de ambos os grupos. Conhecemos algo muito longe da nossa realidade e quebramos alguns  dos nossos preconceitos ao conversar com adeptos e frequentar locais do Islã, pois é uma religião que muito do que se sabe é através da mídia, que por motivos políticos e econômicos deturpam a imagem do islamismo, sempre o associando ao terrorismo, criando assim um falso estereótipo.

 

Os refugiados no Brasil

Tanto na escola, quanto na mesquita tivemos a oportunidade de conhecer um pouco da realidade dos refugiados muçulmanos. Na Medina, conhecemos uma professora recém chegada ao Brasil que dava aula de árabe, com a ajuda do sheikh Yuri na tradução, tivemos uma conversa bastante interessante. Ela se chama Maha e veio da Síria com o marido e três filhos há três meses, fugindo da guerra. Ouvimos sobre a insegurança que ela sentia e a incerteza da sobrevivência em um Estado de guerra. Ela não concorda com a intervenção da Rússia, pois só aumentou o conflito.

Falamos também sobre adaptação e aceitação. O primeiro choque que ela teve ao chegar no Brasil foi na forma como as mulheres se vestem mostrando o corpo, em seguida relatou que um tempo depois, enquanto dirigia foi abordada por um homem que gritava para ela “bomba, bomba”. Isso mostra como o brasileiro associa a religião muçulmana ao terrorismo, prejudicando pessoas que tentam fugir da guerra. Ela também nos disse que sente uma diferença de tratamento da própria comunidade muçulmana pelo fato de ser refugiada.

Perguntamos à ela porque escolheram o Brasil, e ela disse que é a opção mais fácil, segura e barata, se escolhessem algum país da Europa, por exemplo, correriam muitos riscos e gastariam muito dinheiro, enquanto que no Brasil a entrada de refugiados é liberada e a documentação para obter o direito à permanência é mais fácil de ser obtida. Maha disse também que sente muita saudades do restante da família e que não se identifica com o país, por isso pensa em retornar para a Síria.

Outro motivo que leva os refugiados saírem do Brasil e retornarem ao país de origem é a violência. Durante a conversa que tivemos com o sheikh Rodrigo, na mesquita do Pari, ele nos relatou um desabafo que ouviu de um homem já havia sido roubado várias vezes no Brasil, enquanto que na Síria, mesmo em guerra, nunca tinha acontecido isso com ele.

Falamos também sobre quais políticas o Brasil adota para auxiliar os refugiados e descobrimos que na prática, exceto a entrada que é mais facilitada, não existe nenhuma política do Estado brasileiro nesse sentido. Assim, as  mesquitas fazem o que podem para receber adequadamente os refugiados, que se direcionam até elas por fazerem parte da comunidade muçulmana.

O sheik também citou uma ajuda financeira que a Europa enviaria ao Brasil, na medida em que recebessem os refugiados. Pesquisamos sobre essa informação constatamos que havia uma negociação em andamento, mas com o governo Temer, elas foram paralisadas.     


 

IMPRESSÕES GERAIS E APRENDIZADO

      Ao pesquisarmos sobre uma religião e cultura tão estigmatizada como é o Islã, nos deparamos com diversas situações em que nossos pré-conceitos foram desfeitos. Uma grande desinformação a cerca do mundo islâmico, suas leis e seus costumes está presente nas mídias ocidentais.

Por exemplo, a maioria dos países cuja população é majoritariamente muçulmana são países laicos. Os países que seguem a Sharia, ou seja, a Lei Islâmica, são minoria. Em países como Egito e Turquia, as mulheres podem simplesmente optar por não usar o hijab, o divórcio é aceito (embora não encorajado), e soubemos através do sheikh Yuri, que embora no Irã a homossexualidade seja punida com a morte, a transsexualidade não o é, e o governo auxilia pessoas que querem fazer cirurgias para mudança de sexo. Esse tipo de fenômeno demonstra a pluralidade dessa religião, e o multiculturalismo dentro dela. Diversas correntes no Islã possuem diversas visões sobre o Islã. Cabe a entidades como o CDIAL e a WAMY desmistificar esteriótipos e impedir que os praticantes sejam discriminados e fujam para o extremismo. Alguns dos tópicos que consideramos relevantes:

 

Expressão artística

Na religião muçulmana é proibido qualquer tipo de gravura ou desenho de pessoas. Embora algumas correntes sejam mais liberais com relação as fotos, é predominante à desaprovação dos muçulmanos quanto a representações de pessoas, ainda mais em se tratando de figuras importantes, como profetas e califas.

Conforme o que aprendemos nos encontros, proibidos de fazer representações de pessoas, os árabes se especializaram então na caligrafia, sendo a sua linguagem escrita muito rica e complexa, e um dos detalhes que enfeitam as paredes dos templos. Quanto a expressão musical, também é vedada, embora o alcorão seja recitado, ele jamais deve ser cantado. Os muçulmanos enxergam a música como uma adoração à algo ou alguém que não é seu Deus, e esse é o maior erro que um fiel pode cometer. Novamente, em algumas vertentes a música gospel ainda é aceita, mas para os sunitas, que são a corrente que predomina nos lugares que visitamos, a expressão musical é proibida.

Extremismo religioso

Tanto os sunitas quanto os xiitas não reconhecem como muçulmanos pessoas ligadas à grupos como Al Qaeda e Estado Islâmico. Na aula, assim como no sermão compreende-se que a não violência e a resistência pacífica são dois dos fundamentos do Islamismo, e que líderes distorcidos não devem ser ouvidos. No mais, os muçulmanos das comunidades que visitamos entendem que grupos terroristas já estavam previstos no livro sagrado, mas que, de forma alguma representam a religião ou os valores por ela pregados.

A mulher no Islã

O tratamento reservado às mulheres no Islamismo certamente é questionável, se tomarmos como ponto de partida a construção ocidental dos papéis de gênero. Mas mesmo assim, nas visitas ficamos impressionados com o fato de que a mulher muçulmana goza de certas liberdades que não imaginávamos, a exemplo de que podem pedir o divórcio, trabalhar fora, optar por não usar o hijab. Além disso, o casamento infantil não é encorajado pelo Islã, sendo a lei laica de cada país o que determina esses fenômenos.

A mulher é vista como responsável pela educação dos filhos, enquanto o pai é a fonte de sustento do lar. Há controvérsias sobre a poligamia masculina e a punição severa à mulheres adúlteras, ao passo que para homens adúlteros há mais flexibilidade. O Islã é uma religião visivelmente masculina, mas há fortes movimentos feministas que buscam a ruptura com alguns padrões impostos.

 

RELAÇÃO COM OS AUTORES DA DISCIPLINA

Podemos relacionar a pesquisa feita com os conceitos apresentados por Canclini, no livro Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. O Islã e os muçulmanos são fortemente influenciados pelo meio em que se encontram, há uma tentativa de impedir a hibridação cultural descrita por Canclini, que ocorre principalmente quando um núcleo cultural se afasta do seu centro geográfico, que é justamente o que está acontecendo hoje em dia, com as crises humanitárias que assolam o Oriente Médio e a África.

“A expansão urbana é uma das causas que intensificaram a hibridação cultural.” (CANCLINI, 1997)

Também é possível relacionar com o autor Denys Cuche em seu livro A noção de cultura nas ciências sociais, no qual o autor busca estudar a visão de diferentes estudiosos sobre cultura. Destacando-se dois:  

  1. Sobre a definição de Tylor a respeito de cultura:

Pode-­se ver que ela pretende ser puramente descritiva e objetiva e não normativa. Por outro lado, ela rompe com as definições restritivas e individualistas de cultura: para Tylor, a cultura é a expressão da totalidade da vida social do homem. Ela se caracteriza por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é adquirida e não depende da hereditariedade biológica. No entanto, se a cultura é adquirida, sua origem e seu caráter são, em grande parte, inconscientes. (CUCHE,D. 1999)
 

    2. Sobre o método de estudo de Franz Boas:

O etnólogo, se ele quer conhecer e compreender uma cultura, deve aprender a língua em uso. E, ao invés de apenas realizar entrevistas formais em maior ou menos grau [...], deve estar atento principalmente a tudo o que se diz nas conversas ‘espontâneas’, e acrescenta, até ‘escutar atrás das portas’. Tudo isso supõe que se permaneça por longo tempo junto à população cuja cultura está sendo estudada.” (CUCHE, D. 1999)

 

O relativismo cultural com que precisamos lidar com culturas diferentes da nossa habitual dialoga fortemente com a relação do Ocidente com o Islã e da suspensão de valores e crenças que precisamos aderir para a melhor compreensão da cultura.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Acreditamos que no geral, o trabalho e o curso de identidade e cultura foram muito importantes para nosso desenvolvimento não somente acadêmico, mas pessoal também na medida em que nossa sensibilidade e razão foram requeridas. Pois uma das consequências da necessidade de pesquisar a cultura em ação, literalmente na prática, abstenção de posicionamentos etnocentristas de todos os integrantes do grupo, visto que, poderia abrir espaço para possíveis pré-conceitos acerca do Islam e prejudicar a pesquisa.

Sobre o trabalho, acreditamos que ele foi e será de extrema importância para nós e para todos os colegas que tomarem conhecimento dele, pois auxilia na quebra de preconceitos, mitos e tabus causados pela falta de informação, contribuindo para uma sociedade mais tolerante principalmente com a comunidade islâmica.

Isso porque certos comportamentos culturais da religião muçulmana, quando observados a partir de nossa cultura podem ser facilmente taxados de machistas e autoritários, errados e até mesmo surreais, entretanto, ao conhecer outros elementos, geralmente inacessíveis pela mídia, entendemos como e o porquê de certos comportamentos existirem dentro dessa cultura. Lembrando que compreender é diferente de concordar.

Assim, deparando com toda esta vastidão de elementos que integram o que é ser muçulmano, que infelizmente não puderam ser estudados tão a fundo quanto desejávamos devido a complexidade e tempo escasso, pode-se definir o islamismo como uma cultura, que assume diversos perfis variáveis em função da influência de outras culturas locais. Por exemplo, no Estado de São Paulo, estas facetas convivem de forma em que é extremamente difícil definir uma personalidade. Muitas coisas os une o que é observável pela concentração de islâmicos em uma única região porém os indivíduos são dotados de uma complexidade e hibridização que torna comum a ocorrência de casos como a da refugiada Maha que encontramos no Colégio Medina, uma mulher ainda deslocada no meio daquilo que quem está por fora destas relações encara com um olhar homogeneizador.

Esperamos com este trabalho ter contribuído um pouco na compreensão do Islam e afim de enriquecer essas ideias para todos que estiverem dispostos e conhecer mais detalhes, disponibilizaremos na biblioteca os materias que recebemos durante a pesquisa.


 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AL-SHEHA, A. Introdução. In: AL-SHEHA, A.  A mensagem do Islam. Al-Kheraiji Factory. Introdução, p. 9-10.

 

CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

 

CUCHE, D. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 2002.

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